quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Os rumos da revolução (Parte I)

Mohamed Bouazizi, o estopim da Primavera Árabe.

Em seu livro "Política Externa Americana", publicado em 1969, o professor Henry Kissinger -assessor do presidente Richard Nixon para assuntos de segurança- assim descreveu a instabilidade política nas novas nações:

"Quase todas as nações novas sofrem de um mal-estar revolucionário: as revoluções vencem através da incidência de todos os rancores. A eliminação das estrutura existentes, porém, promove a dificuldade de estabelecer acordos políticos. Uma revolução vitoriosa deixa como legado um profundo desajuste. Nos países novos, contra todas as previsões revolucionárias, a tarefa construtiva surge menos fascinante e mais complexa do que a luta pela liberdade; a exaltação da busca pela independência não pode ser perpetuada. Mais cedo ou mais tarde, objetivos positivos devem substituir os rancores do antigo poder colonial como força motriz. Na ausência de forças sociais autônomas, este papel unificador deve ser interpretado pelo Estado.

A aceitação do papel por parte do Estado não produz estabilidade. Quando a coerência social é superficial, a luta pelo controle da autoridade é relativamente mais dura e amarga. Quando o governo é a principal, por vezes a única, expressão de identidade nacional, a oposição passa a ser considerada como traição. O profundo abismo social ou religioso de muitas das nações novas transforma o controle da autoridade política numa questão de vida e morte. Sempre que a obrigação política acompanha as linhas tribais, raciais ou religiosas, o autodomínio entra em colapso. Os conflitos internos assumem o caráter de guerra civil. A autoridade tradicional nas condições existentes vem a ser pessoal ou feudal. O problema está em torná-la 'legítima' -desenvolvendo uma noção de deveres políticos que dependam mais de normas legais do que de um poder coercitivo ou de lealdade pessoal.

Este processo durou séculos na Europa. Deve ser atingido em décadas pelas novas nações onde as condições prévias de sucesso são menos favoráveis do que em períodos equivalentes no continente europeu. Estas nações estão sujeitas a pressões externas; há uma compensação nas aventuras externas que é a de atrair a coesão doméstica. A falta de estruturas internas provoca as já tão marcantes instabilidades internacionais". 

O respeitabilíssimo professor Kissinger, neste contexto, referia-se principalmente aos processos de independência de países do Oriente Médio, da África Subsaariana e do Magreb Islâmico. Estas novas nações ainda passariam por um longo período de estabilização nos âmbitos social, político e econômico. Na verdade, ainda estão passando, haja vista que, após atingirem a independência, muitos destes países se submeteram a violentas e repressivas ditaduras. Alguns saíram do domínio colonial direto para ditaduras, outros ainda enfrentaram autocracias corruptas que os levaram a ditaduras.

Para entendermos o por que da Primavera Árabe, é necessário que tenhamos em mente os acontecimentos históricos que culminaram nas revoltas contra os Estados. Todas as nações revoltosas protagonistas são exemplos clássicos da situação descrita no parágrafo anterior. Assim sendo, nos vale tomar e dissecar o contexto egípcio.

De Muhammad Ali a Hosni Mubarak

Basicamente o Egito foi dominado desde 1805 até o início da década de 1950 pela dinastia Muhammad Ali. Esta iniciou-se com Muhammad Ali Pasha, comandante albanês do Império Otomano que seria encarregado de forçar a retirada das tropas francesas da região. Após fazê-lo, decidiu ficar a formar para si um protetorado que, com o tempo, tornou-se mais próspero economicamente que o próprio Império Otomano, abrangendo também o Sudão. Em meados de 1880 deu-se o domínio britânico, mas a dinastia Muhammad Ali seguiu no poder, sem qualquer oposição ao subjugo da Grã-Bretanha.

A situação só mudou de verdade na Revolução de 1952, quando uma comissão militar forçou o rei Farouk I a abdicar em favor de seu filho, o jovem Ahmed-Fuad, denominado Fuad II que então tinha menos de 1 ano de idade. Esta estratégia dos militares serviu para apaziguar os temerosos britânicos e dar-lhes tempo para que pudessem se estabelecer no governo. Em 1953 o moderado general Mohamed Naguib, um dos idealizadores da revolução, foi empossado presidente, primeiro-ministro e líder do Conselho do Comando Revolucionário (CCR, que era o SCAF da época). Sua ideia era liderar um governo de transição que pudesse abrir caminho para uma presidência civil.

No entanto, outro militar forte e idealizador da revolução, o coronel Gamal Abdel Nasser, não estava contente com a perspectiva de que comunistas e conservadores religiosos - Irmandade Muçulmana- chegassem ao poder. A partir daí começou uma disputa entre Nasser e Naguib, sendo vencida pelo primeiro que instaurou uma ditadura nacionalista no país. Apesar do acordo de armas com a Checoslováquia e do financiamento soviético, Nasser nunca se declarou  pró-URSS. Seu lobby estava entre os não-alinhados e seu "carro-chefe" era o pan-arabismo. Dentro do Egito, ele perseguiu seus opositores (até mandou matar os que tentaram assassiná-lo pouco antes de ele assumir o poder) e deixou a democracia apenas para alguns discursos. Na prática, nada.

Nasser morreu em 1970 vítima de um infarto e deixou o poder nas mãos de seu vice-presidente e grande amigo, Anwar Al-Sadat. Muitos viam Sadat como um político fraco e manipulável, mas ele mostrou o contrário. Utilizou-se de inúmeras estratégias que o mantiveram no poder e procurou um distanciamento das políticas ditatoriais de seu antecessor: incentivou os movimentos islamistas tirando a Irmandade Muçulmana da clandestinidade; promoveu uma aproximação com o Ocidente; e, no âmbito econômico, instaurou a Infitah, que foi a abertura do Egito para investimentos externos e privados.

O que não agradou muito os islamistas e demais países árabes foi o processo de paz com Israel. Após a Guerra do Yom Kippur, em conjunto com Hafez Al-Assad (pai de Bashar Al-Assad), Sadat viu a necessidade de entrar em um acordo com os israelenses e começou a colocar a ideia em prática já no ano de 1974. Em 1979 foi assinado o "Tratado de paz egípcio-israelense" (após os acordos de Camp David), o que rendeu a Sadat e ao então premiê israelense, Menachem Begin, o prêmio Nobel da paz.

O preço que Sadat precisou pagar para promover um pouco de estabilidade na região foi alto. Em 1981, durante uma parada em carro aberto no Cairo, ele foi assassinado. O comandante do grupo executor, Khalid Islambouli, foi condenado a morte um ano depois. Para muitos, Hosni Mubarak teve participação ativa no golpe, não só por ter saído ileso como também pelas inúmeras "coincidências" que se deram no momento: a inatividade dos seguranças presidenciais e caças passando sobre o presidente no exato instante que os tiros foram disparados.

A sucessão de Sadat se deu da mesma forma que a de Nasser. Quem assumiu o poder foi o vice, ou seja, Hosni Mubarak. A história deste já conhecemos muito bem: governou o país de 1981 até 2011 promovendo uma ditadura muito semelhante a de Nasser, mas com uma política externa bastante limitada e fechada. Cuidou ao menos de manter de pé os acordos de paz feitos por seu antecessor com Israel. No âmbito interno procurou marginalizar outra vez a Irmandade Muçulmana e isolar as diferentes classes políticas do país, alegando "proteção".

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