domingo, 14 de abril de 2013

Raízes do sectarismo no Egito

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Existe uma palavra no idioma russo chamada Pogrom. Ela se traduz, em linhas gerais, a algo como "destruir inteiramente". O vocábulo ganhou destaque internacional quando, entre 1881 e 1884, no sul da Rússia, os ataques contra a população judia se intensificaram (segundo consta foram até incentivados pela Okhrana). Um Pogrom é um ataque maciço e violento contra determinados grupos -geralmente religiosos- visando as pessoas e seus ambientes. Ataques como este vêm acontecendo no Egito há muito contra os cristãos coptas -que compõem 10% da população- mas não ganham grande destaque na mídia.

A mais recente escalada de violência se deu no início deste mês, quando quatro cristãos e um muçulmano morreram após confrontos na cidade de Al-Khasous. Os enfrentamentos ficaram mais intensos justamente no velório dos coptas, quando a Catedral de São Marcos foi atacada por vários manifestantes. Segundo fiéis cristãos, a polícia, ao invés de tentar apaziguar a situação, atirava gás lacrimogênio contra a Catedral. "A polícia está atirando gás em nós, eles estão tomando parte daqueles que nos atacam", relatou um jovem citado pelo Ahram (1).

Uma reunião foi realizada às pressas em Al-Khasous visando uma reconciliação entre muçulmanos e coptas. Estes últimos, representados pelo Conselho Consultivo da Organização Copta, fizeram fortes reivindicações e acusaram expressamente a polícia de tomar parte nos ataques. "O plano de luta sectária foi coroado pelas agressões por parte das forças de segurança na Catedral de São Marcos", rezava um trecho do comunicado. Ademais, exigiu-se uma retratação da posição tomada pelo Ministério do Interior dias antes, que condenava expressamente os cristãos pelo tumulto em Al-Khasous. Até o momento nada foi decidido (2).

Comprovando que ocorre justamente o contrário do proclamado pelo Ministério do Interior, o bispo Dom Rafael orientou seus fiéis a se manterem firmes: "Vocês só podem honrar os mártires ficando calmos e orando por eles" e ainda acrescentou que "esta ferida profunda me deixa com três mensagens. Uma para o céu...nós acreditamos na justiça divina...Cristo nos ensinou que ele vinga o sangue dos mártires e que eles não são esquecidos por Deus.

"Minha segunda mensagem é dirigida ao Egito: nós não vamos sair. Os governos não podem exercer seu poder através do derramamento de sangue. Minha última mensagem é dirigida aos coptas do Egito: nós não devemos abandonar nossa fé. O derramamento de sangue só nos deve fazer abraçá-la ainda mais!"

A segunda mensagem, que começa com "nós não vamos sair", sugere  o intuito dos ataques muçulmanos: a expulsão da população copta. Mas por que? Quando esta violência sectária começou? Quando muçulmanos e coptas chegaram ao Egito? Algum dos grupos têm mais direitos que o outro? Estas perguntas serão respondidas no próximo tópico.

O início das hostilidades

Em meu ensaio, cujo mote era a Primavera Árabe, intitulado "Os rumos da revolução" comentei sobre a partir de quando o Egito passou a ser dominado efetivamente por muçulmanos:

"Basicamente o Egito foi dominado desde 1805 até o início da década de 1950 pela dinastia Muhammad Ali. Esta iniciou-se com Muhammad Ali Pasha, comandante albanês do Império Otomano que seria encarregado de forçar a retirada das tropas francesas da região. Após fazê-lo, decidiu ficar a formar para si um protetorado que, com o tempo, tornou-se mais próspero economicamente que o próprio Império Otomano, abrangendo também o Sudão. Em meados de 1880 deu-se o domínio britânico, mas a dinastia Muhammad Ali seguiu no poder, sem qualquer oposição ao subjugo da Grã-Bretanha".

O excelente Egypt Independent (3) trouxe uma cronologia completa da violência sectária contra cristãos, enfatizando que ela se intensificou após o golpe militar que, em 1952, destituiu a monarquia. Antes disso, o episódio que ganhou maior destaque foi o assassinato do primeiro-ministro copta Boutros Ghali Pasha*, acusado de favorecer o imperialismo britânico. Ademais, ele -pese o fato de ser copta- foi nomeado chefe de uma comissão seletiva de juízes para o tribunal da Sharía. Nem é preciso dizer o quão desgostosos ficaram os muçulmanos.

Passada a monarquia e o golpe militar, o general Mohamed Naguib assumiu o poder (1952). Promovendo ampla abertura tanto política quanto econômica ele não agradou e foi substituído por Gamal Abdel Nasser. Sobre Nasser também escrevi algumas palavras anteriormente:
"(...) outro militar forte e idealizador da revolução, o coronel Gamal Abdel Nasser, não estava contente com a perspectiva de que conservadores religiosos - Irmandade Muçulmana- chegassem ao poder. A partir daí começou uma disputa entre Nasser e Naguib, sendo vencida pelo primeiro que instaurou uma ditadura nacionalista no país. Apesar do acordo de armas com a Checoslováquia e do financiamento soviético, Nasser nunca se declarou  pró-URSS. Seu lobby estava entre os não-alinhados e seu "carro-chefe" era o pan-arabismo. Dentro do Egito, ele perseguiu seus opositores (até mandou matar os que tentaram assassiná-lo pouco antes de ele assumir o poder) e deixou a democracia apenas para alguns discursos. Na prática, nada".
Sobre o governo Nasser, Tarek Osman, do Ahram, ponderou aspectos interessantes. Segundo o colunista, o general inicialmente teve o apoio dos coptas, que compunham boa parte da elite econômica desde a monarquia. No entanto, suas medidas populistas representadas pelo supracitado Pan-Arabismo e grande simpatia pela URSS afastaram os coptas mais ricos para os Estados Unidos e Europa. E isso fatalmente refletiu na derrocada da proteção dos cristãos, cujos principais defensores já não mais se encontravam no país (4).

O general Nasser morreu em 1970, vítima de um infarto. Anwar Al-Sadat, vice-presidente, assumiu o governo:
"Muitos viam Sadat como um político fraco e manipulável, mas ele mostrou o contrário. Utilizou-se de inúmeras estratégias que o mantiveram no poder e procurou um distanciamento das políticas ditatoriais de seu antecessor: incentivou os movimentos islamistas tirando a Irmandade Muçulmana da clandestinidade; promoveu uma aproximação com o Ocidente; e, no âmbito econômico, instaurou a Infitah, que foi a abertura do Egito para investimentos externos e privados".
 Sadat, após a surra que seus aliados estavam tomando de Israel, decidiu pôr fim aos conflitos e, em 1979, assinou o "Tratado de paz egípcio-israelense". Apesar da popularidade externa nos anos finais de seu mandato, Sadat estava sendo pressionado internamente. A Irmandade Muçulmana ganhou cada vez mais força até que o presidente a reconheceu legalmente (coisa que Nasser nunca fez). A entidade foi fundada em 1928 por Hassan Al-Banna e sempre contou com um forte diálogo anti-semita e fascista. Durante a Segunda Guerra Mundial foi financiada pela Alemanha Nazista.

Como o respeitado historiados norueguês Brynjar Lia contou em seu relatório sobre a Irmandade Muçulmana, "documentos apreendidos no apartamento de Wilhelm Stellbogen, diretor da agência de notícias alemã no Cairo, mostram que antes de 1939, a Irmandade Muçulmana recebeu subsídios financeiros da delegação alemã no Cairo. Stellbogen foi fundamental na transferência desses fundos" (5).

Para bom entendedor meia palavra basta. Quando Sadat chegou ao governo a força política da Irmandade já era imensa e não poderia mais ser desprezada. Qualquer garoto do colegial sabe que um movimento político precisa, antes de ter condições de exercer qualquer influência, passar por um período de maturação. Assim foi com a Irmandade Muçulmana. Aos desavisados que suspeitam uma fuga do assunto por parte do escritor, fica um aviso: aumento do poderio da Irmandade significa maior supressão dos cristãos coptas. Ao passo que a entidade muçulmana se fortalecia, ocupava os espaços antes dominados pelos cristãos. Esta tática os lembra alguma coisa?

Governo Mubarak

Anwar Al-Sadat foi assassinado em 1981:
"Em 1981, durante uma parada em carro aberto no Cairo, ele foi assassinado. O comandante do grupo executor, Khalid Islambouli, foi condenado a morte um ano depois. Para muitos, Hosni Mubarak teve participação ativa no golpe, não só por ter saído ileso como também pelas inúmeras "coincidências" que se deram no momento: a inatividade dos seguranças presidenciais e caças passando sobre o presidente no exato instante que os tiros foram disparados".
Com Hosni Mubarak no poder houve uma falsa sensação de segurança entre muçulmanos e cristãos. O ditador, mesmo sabendo a força da Irmandade Muçulmana, voltou a torná-la ilegal e organizou uma censura para seus meios de comunicação. Quem estava de fora pensou que a militância fora desbaratada. Contudo, o oposto acontecia e seu crescimento gradativo não foi interrompido. O que Mubarak fez foi evitar, por meio da força, que distintos grupos tivessem contato dentro do Egito. Liberais, coptas e muçulmanos viveram separados até o levante que derrubou o ditador.

Primavera Árabe

É unanimidade entre os especialistas que a revolta egípcia foi de cunho espontâneo. Apesar do exemplo da Tunísia, Mubarak acreditava que poderia coibir os manifestantes. Foi assim durante muitos meses. Fazendo uma reflexão mais profunda, nem mesmo a Irmandade acreditava na queda do ditador. Elucido meu argumento com a frase que tanto vinculou nos meios de comunicação egípcios: "a Irmandade foi a última a entrar na Praça Tahrir e a primeira a sair".

Os membros da Fraternidade só entraram de vez na revolução quando tiveram absoluta certeza da derrota de Mubarak. Ao cabo de tudo, para os que acreditavam que ela havia sido suficientemente reprimida no governo Mubarak, Mohamed Morsi, um proeminente membro, foi eleito presidente na primeira eleição democrática da história do Egito.

Os motivos para a eleição de Morsi foram mencionados em todos os parágrafos acima. Se faz mister destacar agora a situação dos coptas, que é claramente insustentável. Com um presidente da Irmandade Muçulmana, entidade de cunho fascista que persegue desde seu início cristãos e judeus, o que pode ser feito? Sua esperanças estariam depositadas na oposição, caso nesta não imperasse o caos. A suposta "organização" Frente da Salvação Nacional apenas engloba todos aqueles que se dizem contra o governo, mesmo sem ter uma agenda fixa e planos para fazer frente ao trabalho da Irmandade.

O grupo militante muçulmano esperou 84 anos para assumir o poder e dificilmente sairá de lá. Enquanto isso, a perseguição aos coptas não irá cessar até que tais "forças" de oposição tenham em mente que este é um dos objetivos criminosos da Irmandade e que precisa claramente ser coibido antes que mais pessoas inocentes morram unicamente por expressarem a sua fé.



(1). Politically charged Coptic funeral ends in violence, one Death. Al-Ahram
(2). Seventh death in Al-Khousous. Daily News Egypt.
(3). Roots of religious violence lie booth state and society. Egypt Independent.
(4). Understending sectarianism in Egypt. Al-Ahram.
(5). Fascismo islâmico: a conexão Nazista. Gary Aminoff.
FOTO: The Jewish Press.

*Alguns devem estar se perguntando sobre a palavra "Pasha" (pronuncia-se "paxá" em português) acrescentada após os nomes de Muhammad Ali e Boutros Ghali. Ela não designa um sobrenome, mas sim uma alta honraria. Era muito comum tanto no Império Otomano quanto na monarquia egípcia. Alguns autores colocam como a equivalência muçulmana ao título de cavaleiro na Grã-Bretanha. Boutros Ghali foi o primeiro copta a receber tal honra no Egito

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