Primavera Árabe

Há alguns dias fiz uma extensa análise sobre a Primavera Árabe. Achei melhor dividi-la em três partes para não cansar muito os leitores. Agora que outras postagens já a sobrepuseram, decidi publicá-la em uma única página para facilitar o acesso.

Os rumos da revolução



Em seu livro "Política Externa Americana", publicado em 1969, o professor Henry Kissinger -assessor do presidente Richard Nixon para assuntos de segurança- assim descreveu a instabilidade política nas novas nações:

"Quase todas as nações novas sofrem de um mal-estar revolucionário: as revoluções vencem através da incidência de todos os rancores. A eliminação das estrutura existentes, porém, promove a dificuldade de estabelecer acordos políticos. Uma revolução vitoriosa deixa como legado um profundo desajuste. Nos países novos, contra todas as previsões revolucionárias, a tarefa construtiva surge menos fascinante e mais complexa do que a luta pela liberdade; a exaltação da busca pela independência não pode ser perpetuada. Mais cedo ou mais tarde, objetivos positivos devem substituir os rancores do antigo poder colonial como força motriz. Na ausência de forças sociais autônomas, este papel unificador deve ser interpretado pelo Estado.

A aceitação do papel por parte do Estado não produz estabilidade. Quando a coerência social é superficial, a luta pelo controle da autoridade é relativamente mais dura e amarga. Quando o governo é a principal, por vezes a única, expressão de identidade nacional, a oposição passa a ser considerada como traição. O profundo abismo social ou religioso de muitas das nações novas transforma o controle da autoridade política numa questão de vida e morte. Sempre que a obrigação política acompanha as linhas tribais, raciais ou religiosas, o autodomínio entra em colapso. Os conflitos internos assumem o caráter de guerra civil. A autoridade tradicional nas condições existentes vem a ser pessoal ou feudal. O problema está em torná-la 'legítima' -desenvolvendo uma noção de deveres políticos que dependam mais de normas legais do que de um poder coercitivo ou de lealdade pessoal.

Este processo durou séculos na Europa. Deve ser atingido em décadas pelas novas nações onde as condições prévias de sucesso são menos favoráveis do que em períodos equivalentes no continente europeu. Estas nações estão sujeitas a pressões externas; há uma compensação nas aventuras externas que é a de atrair a coesão doméstica. A falta de estruturas internas provoca as já tão marcantes instabilidades internacionais". 

O respeitabilíssimo professor Kissinger, neste contexto, referia-se principalmente aos processos de independência de países do Oriente Médio, da África Subsaariana e do Magreb Islâmico. Estas novas nações ainda passariam por um longo período de estabilização nos âmbitos social, político e econômico. Na verdade, ainda estão passando, haja vista que, após atingirem a independência, muitos destes países se submeteram a violentas e repressivas ditaduras. Alguns saíram do domínio colonial direto para ditaduras, outros ainda enfrentaram autocracias corruptas que os levaram a ditaduras.

Para entendermos o por que da Primavera Árabe, é necessário que tenhamos em mente os acontecimentos históricos que culminaram nas revoltas contra os Estados. Todas as nações revoltosas protagonistas são exemplos clássicos da situação descrita no parágrafo anterior. Assim sendo, nos vale tomar e dissecar o contexto egípcio.

De Muhammad Ali a Hosni Mubarak

Basicamente o Egito foi dominado desde 1805 até o início da década de 1950 pela dinastia Muhammad Ali. Esta iniciou-se com Muhammad Ali Pasha, comandante albanês do Império Otomano que seria encarregado de forçar a retirada das tropas francesas da região. Após fazê-lo, decidiu ficar a formar para si um protetorado que, com o tempo, tornou-se mais próspero economicamente que o próprio Império Otomano, abrangendo também o Sudão. Em meados de 1880 deu-se o domínio britânico, mas a dinastia Muhammad Ali seguiu no poder, sem qualquer oposição ao subjugo da Grã-Bretanha.

A situação só mudou de verdade na Revolução de 1952, quando uma comissão militar forçou o rei Farouk I a abdicar em favor de seu filho, o jovem Ahmed-Fuad, denominado Fuad II que então tinha menos de 1 ano de idade. Esta estratégia dos militares serviu para apaziguar os temerosos britânicos e dar-lhes tempo para que pudessem se estabelecer no governo. Em 1953 o moderado general Mohamed Naguib, um dos idealizadores da revolução, foi empossado presidente, primeiro-ministro e líder do Conselho do Comando Revolucionário (CCR, que era o SCAF da época). Sua ideia era liderar um governo de transição que pudesse abrir caminho para uma presidência civil.

No entanto, outro militar forte e idealizador da revolução, o coronel Gamal Abdel Nasser, não estava contente com a perspectiva de que conservadores religiosos - Irmandade Muçulmana- chegassem ao poder. A partir daí começou uma disputa entre Nasser e Naguib, sendo vencida pelo primeiro que instaurou uma ditadura nacionalista no país. Apesar do acordo de armas com a Checoslováquia e do financiamento soviético, Nasser nunca se declarou  pró-URSS. Seu lobby estava entre os não-alinhados e seu "carro-chefe" era o pan-arabismo. Dentro do Egito, ele perseguiu seus opositores (até mandou matar os que tentaram assassiná-lo pouco antes de ele assumir o poder) e deixou a democracia apenas para alguns discursos. Na prática, nada.

Nasser morreu em 1970 vítima de um infarto e deixou o poder nas mãos de seu vice-presidente e grande amigo, Anwar Al-Sadat. Muitos viam Sadat como um político fraco e manipulável, mas ele mostrou o contrário. Utilizou-se de inúmeras estratégias que o mantiveram no poder e procurou um distanciamento das políticas ditatoriais de seu antecessor: incentivou os movimentos islamistas tirando a Irmandade Muçulmana da clandestinidade; promoveu uma aproximação com o Ocidente; e, no âmbito econômico, instaurou a Infitah, que foi a abertura do Egito para investimentos externos e privados.

O que não agradou muito os islamistas e demais países árabes foi o processo de paz com Israel. Após a Guerra do Yom Kippur, em conjunto com Hafez Al-Assad (pai de Bashar Al-Assad), Sadat viu a necessidade de entrar em um acordo com os israelenses e começou a colocar a ideia em prática já no ano de 1974. Em 1979 foi assinado o "Tratado de paz egípcio-israelense" (após os acordos de Camp David), o que rendeu a Sadat e ao então premiê israelense, Menachem Begin, o prêmio Nobel da paz.

O preço que Sadat precisou pagar para promover um pouco de estabilidade na região foi alto. Em 1981, durante uma parada em carro aberto no Cairo, ele foi assassinado. O comandante do grupo executor, Khalid Islambouli, foi condenado a morte um ano depois. Para muitos, Hosni Mubarak teve participação ativa no golpe, não só por ter saído ileso como também pelas inúmeras "coincidências" que se deram no momento: a inatividade dos seguranças presidenciais e caças passando sobre o presidente no exato instante que os tiros foram disparados.

A sucessão de Sadat se deu da mesma forma que a de Nasser. Quem assumiu o poder foi o vice, ou seja, Hosni Mubarak. A história deste já conhecemos muito bem: governou o país de 1981 até 2011 promovendo uma ditadura muito semelhante a de Nasser, mas com uma política externa bastante limitada e fechada. Cuidou ao menos de manter de pé os acordos de paz feitos por seu antecessor com Israel. No âmbito interno procurou marginalizar outra vez a Irmandade Muçulmana e isolar as diferentes classes políticas do país, alegando "proteção".

A lógica ascensão da Irmandade Muçulmana

Com a queda dos regimes anteriores já era esperado que grupos islâmicos ganhassem força e tomassem o poder. A verdade é que eles nunca perderam força efetivamente, tanto que foram "cirurgicamente" marginalizados pelos governos. No Egito, Hosni Mubarak contrariou Anwar Al-Sadat e voltou a considerar a Irmandade Muçulmana criminosa. Esta medida nos dá uma boa noção da influência que as organizações religiosas conservadores têm nestes países.

Mas por que justamente a Irmandade Muçulmana ganhou tanta força? Bom, para respondermos a esta pergunta precisamos voltar ao ano de 1928 quando, no Egito,  o professor e imã Hassan Al-Banna decidiu criar uma organização pacífica e política cujos preceitos eram baseados no Alcorão e na Sunnah. Esta organização era Al-Ikhwan Al-Muslimun, a Irmandade Muçulmana. Durante anos Ikhwan prestou assistência aos pobres, ensinou analfabetos e ajudou a população, conquistando grande simpatia.

Com o passar do tempo sua influência foi se estendendo por outros países islâmicos e a política da não-violência passou a agradar. Inclusive, quando o grupo terroristaHamas foi fundado, em 1987, um de seus idealizadores, o Sheik Ahmed Yassin, foi expulso da Irmandade haja vista que o grupo desde o início queria pegar em armas contra o estado de Israel.

Este aparente pacifismo é ótimo, mas não tira o caráter conservador da Irmandade. Para eles, o islã e a política caminham juntos. E a sharía deve estar presente em qualquer governo. Entenderam? Desde os seus primordes Ikhwan é um movimento político, por isso ascendeu tão rapidamente logo que os governos autoritários caíram. Sua grande organização lhes permitiu que oferecessem uma alternativa à carente população. E, além disso, não havia mais partidos que pudessem concorrer de igual para igual com os islamistas. Em outras palavras, a repressão conseguiu deter os secularistas mas não os conservadores religiosos.

Voltando ao Egito, a Irmandade está no poder mas a crise continua

Logo que Hosni Mubarak caiu e eleições presidenciais puderam ser realizadas no Egito, a Irmandade Muçulmana, através do Partido da Liberdade e Justiça, chegou à presidência com Mohamed Morsi. O engenheiro de formação que estudou nos EUA queria mostrar que se distanciaria um pouco do conservadorismo de seu partido e seria mais centralizador. No entanto, essa imagem que ele estava tentando passar durou pouco. Digamos que até seu decreto faraônico (comentei sobre ele aqui eaqui).

Com medo de uma nova ditadura, desta vez islâmica, a população foi às ruas protestar novamente. O problema é que não havia uma oposição forte para defrontar o presidente. Recordem-se que no trecho acima falei a respeito da desorganização dos secularistas. Pois é, isso de certa forma facilitou as coisas para a Irmandade que não tinha um rival político a altura. Os opositores mais significativos eram considerados felool (termo pejorativo utilizado para se referir aos remanescentes da era Mubarak) e marginalizados pela Irmandade, exatamente da mesma forma que descreveu o professor Kissinger no trecho inicialmente mencionado.

Para se ter uma ideia, a oposição só conseguiu certa organização poucos dias antes  do primeiro turno do plebiscito que visaria aprovar ou não a nova Constituição. A "unificação" se deu com a criação da Frente de Salvação Nacional, que tentou englobar -sob a liderança de Ahmed Shafiq e Mohamed El-Baradei- todos aqueles que eram contra as decisões do presidente Mohamed Morsi e da Irmandade Muçulmana. Basicamente, a primeira reação da Irmandade foi classificar a todos como felool, não importando a qual vertente política pertenciam.

A tendência é que a Constituição baseada na sharia seja mesmo aprovada no Egito. Alguns veem isso como o primeiro passo para a democracia, mas é difícil acreditar que seja mesmo. Se qualquer artigo está submetido à lei islâmica, ele pode ser deturpado de forma conservadora. Quem mais sofre com isso? Principalmente os cristãos coptas (que formam 10% da população) e as mulheres.

No âmbito econômico, os dados também não são muito bons. A crise de 2011 para cá se intensificou muito e o turismo, uma das principais fontes de renda egípcia, foi significativamente prejudicado. O presidente Morsi já recebeu ajuda dos Estados Unidos mas precisa de mais. Recentemente negociou um empréstimo com o FMI. No entanto, o dinheiro só será liberado quando o país atingir certa estabilidade, isto é, quando sua Constituição for aprovada. A aprovação, em si, será o menor dos problemas para a Irmandade. O difícil mesmo será enfrentar a ira da oposição depois.

Na Tunísia, secularistas venceram mas agora sofrem; na Síria o sectarismo é cada vez maior

A Tunísia é o berço da Primavera Árabe. Foi lá que, em 2010, o comerciante Mohamed Bouazizi colocou fogo em seu próprio corpo e "acendeu" a revolta (não foi um trocadilho proposital). Posteriormente à queda do presidente Ben Ali, o secularista Moncef Marzouki foi eleito. O problema é que agora ele enfrenta quase os mesmos problemas que Ben Ali.

A população está cansada de sofrer. Está cansada de passar fome e de ser subjugada. Marzouki não é um ditador, muito pelo contrário, mas ele não pode até agora atender os anseios da população. Racionalmente falando é impossível que ele consiga reverter o quadro econômico de um país tão castigado em menos de dois anos. Não há como. Mas também não há como explicar isso para alguém que está sem emprego (o desemprego aumentou na Tunísia) e precisa sustentar sua família.  Em recente visita a Sidi Bouzid (cidade de Bouazizi), o presidente Marzouki e seu primeiro-ministro foram recebidos a pedradas. E isso só abre um espaço cada vez maior para os conservadores islâmicos, que já conseguiram angariar um grande número de simpatizantes. 

Na Síria, o conflito ainda está longe de ser resolvido. O presidente Bashar Al-Assad e seu exército, predominantemente alauíta, ainda resistem aos ataques rebeldes. Estes, por sua vez, foram reconhecidos por potências internacionais, conquistaram territórios e bases significativas mas ainda não têm condições de depor Assad. Nisso, o sectarismo aumenta cada vez mais. Aqueles que estão ao lado de Assad -principalmente alauítas e cristãos- tendem a sofrer se o próximo governo for islâmico.

Alguns diziam que antes da guerra civil a Síria era um paraíso de diversidades. Outros eram mais realistas dizendo que o país era um caldeirão de água pronta para entrar em ebulição a qualquer momento. Quem controlava isso era a família Assad, mas pelo visto Bashar nunca teve o pulso de seu pai Hafez. Com a oposição fragilizada, o muçulmanos fundamentalistas tiveram espaço para a agir e mostrar a "mão amiga" para os necessitados. É difícil prever o que acontecerá na Síria nos próximos tempos.

O que esperar daqui para frente?

Até agora, vimos que os primeiros governos que se instauraram -secularistas ou islâmicos- estão tendo problemas para se manterem firmes graças a impaciência da população já cansada de sofrer. Isso vai dificultar um pouco as coisas a menos que medidas rápidas e satisfatórias sejam tomadas. Uma delas, no caso do Egito, seria o abrandamento da Irmandade. Em artigo recente para a Al-Jazeera o professor Mark LeVine disse algo muito correto: que a tendência de determinados partidos quando chegam no poder é o abrandamento. Isso não acontece por uma questão ideológica, mas sim pelo ímpeto de quererem ficar onde estão.

Voltando a falar sobre economia, todos estes países precisarão de ajuda externa para se reerguerem (a Síria principalmente). Sendo assim, empréstimos como os que o Egito realizou serão comuns. Contudo, para que o FMI libere este dinheiro os países precisam fazer um acordo de corte de gastos (assim como na União Europeia, com o memorando). Em outras palavras, precisam passar por um período de austeridade que vem tradicionalmente após mudanças tão radicais.

Agora vamos pensar um pouco pelo lado da população: será que vai ser fácil aceitar isso? A resposta é clara e muito óbvia, não. Muitas dessas pessoas já enfrentaram dificuldades ao longo de suas vidas e não querem passar pela mesma coisa. A diferença é que agora eles não hesitarão em protestar quando necessário e isso dificultará as coisas para os governos.


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